sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sobre o rompimento do meu dique...


O limite foi ultrapassado.
A dor predominou.
E o resto de autocontrole, de disciplina, de sanidade, se rendeu ao sofrimento...
E afogada em autopiedade e ressentimento, afundei na minha própria sombra.
E emergi cega de fúria e disposta a enfrentar (e afrontar) todo mundo.
E como um espelho macabro, eu comecei a apontar e julgar nos outros, tudo aquilo qye não era aceito dentro de mim.
E os mais próximos, os mais amados, foram os mais julgados, os mais feridos.
E com razão, eles se afastaram, fugiram da minha presença tão cáustica...
E eu me vi só. Os amigos não confiavam mais em mim. Como confiar em alguém que num repente, pode surtar e destratar todo mundo?
Como querer por perto alguém que derrama veneno pelos olhos e pela boca?
Então, sozinha, sem ter a quem atacar, coloquei a mim mesma no banco dos réus do meu próprio julgamento.
E como todo condenado, revi toda a minha conduta e me arrependi profundamente dos meus atos desvairados.
E fui tomada pela vergonha.
Vergonha de ter tratado tão mal aqueles a quem eu mais amo.
E é essa vergonha que me impede de pedir perdão pessoalmente.
É a vergonha que me faz ficar em casa, por achar que não mereço mais estar perto deles.
É a vergonha que barra minhas manifestações de carinho, afinal como alguémque te encheu de patada pode te abraçar e dizer que te ama?
Mas eu amo sim, e muito...
E assim, covarde de tanta vergonha, tento aos poucos, me aproximar de novo...

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Testamento Lírico

"Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre, sempre
Do possível de fábulas. de fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras doiradas. Meu espanto.
Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos.
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)

A criança que foi
Tão confundida.

(Hilda Hilst)